quarta-feira, julho 26, 2006

fazer a própria vida

O corpo desfaz-se.
As agulhas.
Os aparelhos.
Os doentes.
Os comprimidos diários.
As batas brancas…dos outros.
Os corredores.
O cheiro dos químicos.
O hospício.
O cheiro da carne.
Os olhos.
O cheiro da cama.
As mãos.
O cheiro do sangue.
Os tubos.
Os ensaios.
O cheiro dos mortos.
A metamorfose.
O cheiro do corpo…a desfazer-se.
A decomposição.
O cheiro a vida.
A morte.

sexta-feira, julho 21, 2006

adeus

babe morreu e eu fiquei no seu lugar

as filhas

Egon Schiele, 1914


"o conjunto de todos os
nomes é o nome de
deus, enumeramos o diabo
e as suas questões como
dobra do nosso pecado, e não
desperdiçamos palavra alguma,
somos os mais silenciosos
súbditos, uma oferenda
débil como um peixe
ainda turvo fora de água"

Valter Hugo Mãe in a cobrição das filhas

terça-feira, julho 18, 2006

Animal

Egon Schiele, 1911

«A Ti porém dedico
o motivo da lira que em glóbulos herdei
sangue do teu fabrico parágrafo da cítara
levantada nos cornos do deus que em músical
[compasso
genital
cozeu nos altos-fornos do céu em liberdade
a gélida faiança da imortalidade


do filme em musselina das sissis
resta uma fímbria esvaída de veados
e bosques que das sombras da opereta
chupam delidos bichosos rebuçados»
Natália Correia in O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro

sexta-feira, julho 14, 2006

Coitus

Egon Schiele, 1915
graphite and gouache on paper
31,6 x 48,8 cm
Leopold Museum, Viena
o odor do prazer misturado nas peles por debaixo das vestes amachucadas
o trejeito repete-se ondulado e sempre novo
é a sina do coito abrupto
o belo da bestialidade humana

quarta-feira, julho 12, 2006

e todas as rosas do mundo


"Na escuridão absoluta, a escuridão absoluta. Na escuridão, o silêncio. O frio. O medo de qualquer coisa desconhecida. E o tempo era o rio lento, negro, frio, que levava consigo o tempo de quem perdeu tudo. Eu sentia que morria devagar.
[...]
Passos pequenos, frágeis. Talvez os passos de uma criança. Talvez os passos de uma menina que caminhasse devagar, escolhendo o seu caminho. Os meus olhos viam. E, entre o fogo, atravessando as chamas, vi o rosto daquela que desaparecera dentro de mim.
[...]
Eu não tinha braços para lhe estender. Eu só tinha os meus olhos para a abraçar. Os nossos olhos eram atravessados pelo corpo fino das chamas que se levantavam no quarto. Ela disse a tua vida foi muito importante. Eu amava-a ainda. Ela disse deste a tua vida para entender que o amor é impossível. O amor é o sangue do sol dentro do sol. Algo dentro de qualquer coisa profunda. Ela disse desta a tua vida para entender que o amor é a solidão. Ela disse estavas certo desde o início, o amor é tudo o que existe.
[...]
Ela olhou muito para mim. Ela era o seu rosto de menina, a sua pele pura. Lembrei-me dos meus dedos sob a água limpa de uma fonte. Ela era a mulher mais bonita do mundo. Ela era a manhã sob o céu a iluminar a claridade. Ela disse amo-te. Ela, o seu rosto puro, diante de mim, as chamas, o fogo, disse amo-te. Como palavras impossíveis e como únicas palavras. Eu sorri tanto. Fui feliz e, nesse momento, morri."

José Luís Peixoto in Uma Casa na Escuridão

terça-feira, julho 11, 2006

Príncipe de Calicatri

"Durante os anos que andou a correr mundo, nunca esperei nem uma carta, nem um telefonema. No entanto, quando o vi entrar no pátio, quando o vi à minha frente, reconheci-o imediatamente e, naquele rosto, reconheci o seu rosto envelhecido de criança. O príncipe de calicatri."

José Luís Peixoto in Uma Casa na Escuridão

sábado, julho 08, 2006

myocardium

o ódio nasce devagar.
fixa-se calmamente e adquire raízes firmes.
a pouco e pouco torna-se um monstro enorme que te devora pelas entranhas.

é um pássaro que entra pela tua janela e vai bicando no teu peito até encontrar um coração.

sexta-feira, julho 07, 2006

ESPECTROS


"Vida significa lutar com os fantasmas no próprio cérebro e coração"
Henrik Ibsen

quarta-feira, julho 05, 2006

pietá


...por um acaso somos mamíferos podendo no entanto ter sido uma outra coisa qualquer...

terça-feira, julho 04, 2006

#3#

ela diz:
“há a possibilidade de reter um pouco de água na boca
uma serpente fogosa amolga a erva interrompendo o monólogo
extinguem-se as estrelas é tarde
a noite consome-se velocíssima"

ele já ali não está
apenas a objectiva da câmara continua a segui-la

a partir de Al Berto

domingo, julho 02, 2006

a flor do mal

olho por dentro dos olhos e vejo sangue
e uma flor que já foi branca